para a inês, linda inês,por tudo.
Só há duas coisas que Portugal tem e que mais ninguém tem: Fernando Pessoa e a luz de fim de tarde em Lisboa.
Aos vinte e oito anos, casei-me. Casei-me em Lisboa. Conhecia-o então há cinco anos e tinha a certeza que aquele homem seria o homem da minha vida e o pai dos meus filhos. Nisso, não me enganei. O Fernando é o homem da minha vida. Esta frase é que não quer dizer nada do que eu pensava na altura.
Li, há dias, numa revista americana um artigo sobre um homem que aos 49 anos tinha perdido a virgindade com uma prostituta. Excepto que naquele caso, a mulher não se chama prostituta porque é tudo visto terapeuticamente e é legal na Califórnia. Já estou a baralhar a estória. Contei logo o final, voltemos ao início:
Era a estória de um homem que era virgem aos 49 anos. Vivia sozinho, almoçava uma vez por semana com os pais. Tinha tirado um curso superior numa daquelas boas faculdades, ganhava muito dinheiro, tinha escrito poemas e feito teatro. Só nunca tinha era dado uma queca. Tinha tido uma relação de adolescentes daquelas desastradas e a partir daí nunca mais conseguiu voltar a ter uma relação normal com uma pessoa. Passou vinte anos em psicoterapia, psicanálise até descobrir a possibilidade de na Califórnia ter terapia com uma mulher de substituição (traduzo de minha memória do inglês). Finalmente, descobriu a intimidade física com alguém e no final, penetrou-a vaginalmente.
No dia em que li o artigo, o Fernando penetrou-me vaginalmente durante sete minutos e meio. Lá fora, estava uma luz de fim de tarde lindíssima.
Só nos casamos quando tínhamos vinte e oito anos porque esperei que o Fernando voltasse. Ele estudou lá fora, em Berlim. Ele ainda quis que eu fosse ter com ele, que nos casássemos e vivêssemos lá. Nunca soube falar alemão (fui visitá-lo várias vezes a Berlim e nunca aprendi nada da língua).
Uma vez, saída do avião—ao fim de várias chegadas, ele já não me ia sempre buscar—entrei num taxi para ir ter ao apartamento dele. Disse que era portuguesa no meu alemão muito arranhado. O taxista era daqueles portugueses que já nem se lembra se o Porto é no Sul ou no Norte e falou-me no seu mau português e pôs música portuguesa. Lá lhe expliquei em frases educadas - porque é que não fui desagradável e seca? Nunca consegui sê-lo, trato melhor os taxistas que os meus filhos, ou o meu marido - que estava ali para ver o meu noivo, português também. Contentíssimo, o taxista convidou-me para casa dele, para nos acolher. Esta oferta de acolhimento, trouxe-me à cabeça imagens da Feira Popular, com o cheiro a farturas—aquele óleo queimado de mais sempre me enojou—e a música alta, música como a que tocava no taxi. Percebi que não só não seria aceite naquele meio imigrante (ou talvez o meio me aceitasse, mas eu nunca o aceitaria), como seria sempre vista, pelos alemães, como associada àquele meio enquanto portuguesa. Por outro lado, aqueles alemães, grandes, louros, que se riem muito, fazem desporto, que se preocupam com o ambiente, que são tolerantes, uns cabrões de saudáveis com quem o Fernando se dava então não me diziam nada. A partir daí, decidi que não iria viver como imigrante, não o suportaria.
O Fernando não tem pátria. Orgulha-se disso. Fala mal sete ou oito línguas (inclusivé o português. Ainda ontem me perguntou Queres comer uma entrada ou passarmos ao prato? Eu corrigi-o e ele chamou-me fascista da gramática com aquele sorriso pelo qual me apaixonei e que hoje me deixa cheia de saudade. Saudade, não pelo Fernando de então, nem pela Vera que eu então era. Ele não mudou. Nem mudei eu. Ficou tudo na mesma. Ficou só mais a preto e branco). O Fernando dá-se bem com toda a gente. Agradava-me isso, que os meus pais o adoravam. E as minhas amigas e amigos e toda a gente. Hoje, parece-me um sorriso de vendedor.
No tal artigo, dizia a senhora (como lhe chamar?) que nas primeiras sessões começa apenas por pedir às pessoas que toquem em frutos, maçãs, por exemplo. Que lhes toquem como se fossem pessoas, o toque sensual chamou-lhe. Depois, pede às pessoas as mãos e acaricia-as. Disse que há muitos clientes que choram tão forte é a emoção.
Gosto de subir a rua Garrett ao fim do dia, com o Sol a pôr-se atrás do Camões. Saio da fnac (com o livro que comprei, mas que talvez só leia até metade) e subo a rua. O Fernando encontra-se comigo no topo. Veio de Metro e subiu de escadas rolantes. Apanhamos este hábito de jantar juntos uma vez por semana, com os putos em casa dos meus pais.
Ontem, cheguei mais cedo à Baixa e resolvi passar pela Estação do Rossio. Lembravam-me da estação por pequeno pormenor que me fascinava: os vários relógios da estação estavam sincronizados de modo a que ouvimos o seu baixo tic-tac estrondosamente em qualquer ponto da estação. Ontem vi que, de facto, os relógios continuam sincronizados, mas já não me impressionou como na minha memória. Nunca podemos voltar aos locais das nossas memórias. Corremos o risco de eles terem mudados (na minha memória os relógios eram grandes relógios analógicos e são, na realidade, pequenos mostradores digitais), e também o risco (ainda mais grave) de os locais estarem iguais, mas não reagirmos da mesma forma.
Ontem, antes de eu sair de casa, o meu filho mais velho (tenho dois: o André tem oito anos e o Gustavo tem cinco) chegou do jogo da bola. Pu-lo no banho e preparei-lhe o lanche. Ele toma sempre banho muito depressa. Quando regressou, eu tinha parado de lhe cortar a fruta e tinha a maçã na mão. Eu não o vi entrar e fiquei muito tempo até ser interrompida pelo Qu'estás a fazer?. Deitei no lixo a maçã, Não estava boa, menti-lhe. Cortei outra maçã, gritei-lhe porque ele estava ainda com o cabelo molhado (ele está sempre com o cabelo molhado quando vem comer e eu nunca lhe digo nada. Sempre gostei de homens de cabelo molhado. Mas ontem, gritei-lhe). Depois, fui para a casa de banho. Não chorei. Sentei-me em cima do tampo da sanita e ao fim de cinco minutos, levantei-me, puxei o autoclismo e saí. Que situação ridícula.
Hoje, aconteceu outra coisa que não me acontecia há muito tempo. Masturbei-me. Não me vim, entediou-me e parei. Quando me casei, fodíamos quase todos os dias. Depois, comecei a perder a vontade (a vontade de foder e a vontade de quase tudo: mesmo a vontade de me deprimir com estes problemas). Dantes pensava que poderia ser sexualmente activa até aos cem anos, mesmo que me diminuísse a vontade, diminuiria a frequência, mas não a intensidade. Agora, tenho mais facilmente orgasmos (o Fernando também me conhece melhor. Ele sabe como me tocar - tocar está aqui mais perto do sentido de tocar um instrumento que de o de tocar numa maçã, penso eu), mas não me parece tão importante. É uma necessidade a preencher.
Engraçado, pôr isto desta maneira. Necessidade sempre me pareceu uma palavra de força. Preciso de ti parecia-me a maior declaração de amor. Preciso de ti, agora. Hoje, penso que a necessidade implica a ausência de escolha. Se eu não precisasse de ti, quer-te-ia na mesma? Se eu não precisasse de ti, será que me ia embora?
O Fernando é o homem da minha vida. A minha vida é tudo aquilo que quis.
Quando era jovem queria noites excitantes, hoje quero noites agradáveis. É isto ser-se velha?
Já tive dois casos com homens e sei que o Fernando já teve pelo menos um caso com uma mulher. Dantes, era muito ciumenta. Hoje sei que o Fernando me ama e que se ele está com outra mulher, isso é outra coisa diferente e quase que fico contente que ele esteja com outra mulher (como uma mãe que fica contente por descobrir um bilhete de amor na roupa do filho. Penso eu, ainda não me aconteceu com os meus filhos).
Eu e o Fernando fomos, ontem, jantar ao Primeiro de Maio. Três vezes na minha vida, mudei de vida e cortei com todas as pessoas que tinha na minha vida anterior (algumas para reencontrar mais tarde, como o Fernando). Pensava então que em todos os grupos sociais, todas as tribos urbanas (como se lhes chamam agora), cada pessoa tem o seu papel nos rituais do grupo. Quando a pessoa cresce (ou passa a preferir gelado de morango e não chocolate), não consegue mudar o seu papel dentro do grupo e é preciso sair. Como se para se poder cortar o cabelo fosse preciso cortar com todas as relações.
O Primeiro de Maio era um restaurante onde íamos há muito tempo, antes de o Fernando estudar três anos em Berlim. Hoje em dia, preferia que nos dessem a provar o vinho em vez de deixarem só a garrafa na mesa. Mas que merda de razão para deixar o meu marido e filhos, não é?
Uma amiga minha disse que nós desistimos de lutar. Os nossos amigos nestas coisas poucas vezes são úteis. Tentam servir de espelho. Tentam descobrir como nos sentimos para poderem dizer que também sentem o mesmo. Como todas as pessoas são igualmente contraditórias se vistas de suficientemente longe, há sempre uma qualquer frase vazia de forma sentida que nos faz conter as lágrimas como se aquilo tivesse algum sentido.
Eu não desisti de lutar. Antes pelo contrário: luto muito mais agora que anteriormente. Esforço-me muito mais. Quando era jovem, nunca lutei nada. Fiz o percurso mais directo para a vida. Só soube esperar (e mal) que chegasse o Fernando. Foi o maior esforço que fiz. Hoje, acordo cedo para manter a minha família. Engulo em seco os comentários desagradáveis que o Fernando às vezes me faz. Trabalho a tempo inteiro e sou mãe. Esforço imenso, não tenho é objectivos maiores que deixar tudo como está.
Sou feliz. Tenho tudo o que sempre quis. Um marido carinhoso, tenho conforto em minha casa, dinheiro, tenho dois filhos rapazes.
Se ainda estou apaixonada pelo meu marido? Claro que sim. Ele é carinhoso, forte, bonito (gosto de ver os olhares de inveja das minhas amigas. Acho que principalmente por estes olhares terceiros é que sempre preferi desportistas a intelectuais).
Se ainda quero fazer amor com o meu marido? Sim, quero. Já não quero fodê-lo ou que ele me foda. Quero sentir o calorzinho da cama, o cheiro do shampoo (gosto mesmo de fazer amor depois do Fernando sair do duche), de sentir a pele dele contra a minha, de o sentir penetrar-me. Gosto do ritmo do corpo dele, dos músculos que flectem. De ver o meu próprio corpo, mais flácido que abana todo, o contraste das nossas diferentes tonalidades de pele, de ver os meus seios abanarem. Gosto destes momentos, destas fotografias. Prefiro momentos agradáveis de amor a momentos excitantes de sexo.
Já não me deixo perder o controlo. Nunca deixei, gostava era de fingir que sim. Fingia tão completamente que chegava a acreditar. Lembram-se do poeta que finge tão completamente que chega a fingir a dor que deveras sente? Nunca escrevi poemas, mas fui para a cama com muitos homens. Sentia prazer, obviamente. Sempre senti prazer com o sexo, não está isso em causa. Mas gostava de exagerar um pouco. Gritar muito, mesmo se não tivesse mesmo de gritar. Não sentia que estivesse a fingir orgasmos. Além disso, a ideia de fingir orgamos, parecia-me então uma ideia para mulheres frígidas. Claro que desde então já mudei de ideias. Talvez seja mais honesta comigo agora que, às vezes os finjo que anteriormente, quando os tinha.
E os meus filhos? Os filhos foram o que me tornaram humana. Ser-se humano é perceber que não há contradição nenhuma entre o corpo maquinal e sujo (que sangra, doí, soa e uma vez por dia é preciso levá-lo a defecar) e a beleza enorme da alma.
A reprodução é desde o início aquilo que trabalha para nos tornar mais humanos.
Aos treze anos veio-me o período. Estava em casa e acordei com a cama molhada de sangue. Primeiro, o orgulho. Orgulho porque a Mariana há um ano que tinha o período e estava sempre a perguntar-me se eu também já tinha tido. Depois, percebi que preferia não ter nem período nem Mariana. E por fim, não soube o que fazer. Chamei a minha mãe que me pôs na banheira, deixou-me faltar às aulas e fomos comprar pensos higiénicos.
Aos dezoito anos, perdi a virgindade com um rapaz chamado Vasco. Ele era carinhoso, mas éramos os dois virgens e inexperientes. Depois dele, dei muitas quecas. Progressivamente, fui aceitando o meu corpo. Aceitava-o principalmente porque os homens o aceitavam, o desejavam. E porque em fins-de-tarde depois do amor, a nudez me vinha tão natural que não fazia sentido que não o aceitasse.
O passo seguinte é a gravidez e o parto. A gravidez, com horas passadas em médicos, exames, radiografias, ecografias e tiragens de sangue (tão mecânico, tão clínico que se torna então o corpo); e o parto, que é aquele mar de sangue e fluidos que leva ao nascimento de um pequeno bebé ensanguentado. Bebé ensanguentado que depois, se o deixarmos, faz cocó por todo o lado.
Ontem, não fui a uma sessão da tarde de um filme que até me interessa ver porque tive de ir esperar o meu filho do treino. Quem me convidava era uma colega do emprego que só trabalha a meio-tempo por causa dos filhos. O mais importante que os filhos nos dão é razões. Dão-nos uma razão para só trabalhar a meio tempo, para não ir ao cinema e para tudo o resto. Dão uma interpretação aos meus actos que substituiu a irracionalidade dos vinte anos.
Hoje, mais uma vez, está um lindíssimo fim de tarde em Lisboa.
Como o Fernando, esta cidade faz parte da minha vida. Como o Fernando, esta cidade está tão carregada de memórias que (como num Jackson Pollack), torna-se difícil distinguir a cor dominante. Já não traz com ela sentimento puro. Já fui feliz nela e já chorei ao subir o Carmo (o Fernando já me fez chorar tantas vezes que não me lembro já de nenhum caso específico. Uma vez deu-me um estalo); já beijei e já vomitei no Bairro Alto. Esta cidade é a minha casa, é o sítio onde vivi.
Esta cidade é a cidade da minha vida (o Fernando é o homem da minha vida).
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